Opinión

Por fim, as Letras para Carvalho Calero

No mesmo dia 22 em que chega a notícia tanto tempo esperada de que se dedicará o Dia das Letras Galegas  de 2020 a Carvalho Calero, quero escrever um texto que o celebre e difunda, com a mesma ortografia que compartimos desde há quarenta anos com o homem  a quen se fai homenagem, rogando á imprensa que respeitem este repto.

Para nós, D. Ricardo Carvalho foi indiscutivelmente uma das figuras máis importantes das Letras  na Galiza do século XX, quizá um dos seus catro melhores autores.

Ninguém lhe podia negar a Carvalho, com um mínimo de objectividade, o mérito de ser merecente do Dia das Letras. Mas negaram, durante vinte anos, contando os dez de respeito e dó. Um homem, ainda que de baixa estatura física, de muito elevada estatura moral e intelectual, como bem sabemos os que tivemos a sorte de conhecé-lo bem. Era heterodoxo nas suas ideias, talvez antiquado e conservador, muito especial de carácter, protocolário, analítico, ocorrente, meticuloso, acadêmico e cultíssimo, lento e brilhante nos seus argumentários, com um forte carácter, com um génio e olhada terríveis quando algo o incomodava,  e que inspirava respeito. Também havia outro Carvalho Calero, simpático, carinhoso, atento e cordial, de sorriso tenro e educado, muito bom amigo.

D. Ricardo foi um homem com uma trajectória vital muito interessante, mesmo contraposta antes e depois da guerra civil do 36, que podemos hoje conhecer por livros de Martinho Montero, Aurora Marco e do que escreve, ou por números extra de revistas como Grial, Agalia ou A Nosa Terra, além de numerosos artigos de jornal. E muito máis que se vai divulgar este ano e o que vém, agora que se abriu a veda do siléncio.

Evolucionou este ferrolano desde o moço universitário metido em política galeguista, membro do Seminário de Estudos Galegos e um dos redatores do Estatuto do 36, passando por oficial do exército republicano, a cadea e condena a morte, a dura posguerra no exílio interior, o ensino privado em Ferrol e Lugo, a produção literária e científica, a cátedra de galego na Universidade de Santiago, e o reintegracionismo dos seus últimos dez anos, em jornais, livros e palestras, no que defendia que o galego devia escrever-se como o português, pois eram e são a mesma língua, mal que lhes pese a alguns que temiam perder os seus postos provincianos e castelhanófilos no país.

Na minha geração conhecemos a D. Ricardo no ano 1975, em que foi o nosso professor de galego em terceiro curso de Filologia: um mestre temível por rigor e exigência, que imponhia ja sem falar, que nunca sorria na aula, acenando com os braços como um senador no foro, com poderosa voz  modulada que nos prendia com o engado da sua oratória perfeita, lançava frases precisas en cadea cadencial com inusitado rigor, todas previamente ordenadas naquela mente de asombrosa memória, entre longas pausas, esses sibilantes, longuïssimos siléncios circunspectos que aportavam suspense, para resolver com a afirmação final, as mãos em alto e um leve sorriso. Assi o lembro.

Muito diferente foi despois nos anos oitenta, ja aposentado no seu despacho de emérito nos baixos da Faculdade de Filologia, máis humanizado e jovial, sempre cortês e amável, sobretudo com as donas e alunas, mas também com todos os que tivemos a sorte de estar á sua beira e ser os seus discípulos, apóstolos de uma causa “lusista”. Convivemos com o nosso Mestre e seguimos evangelicamente os seus ensinos, lemos cada linha que escreveu, fixemos-lhe entrevistas em jornais e vídeos, programas de radio, compartimos tertúlias publicas ou conversas privadas em Lugo, Viveiro e Foz, congressos de lingüístas e viagens. Durante essa década de oitenta a noventa Carvalho Calero está detrás de toda empresa cultural de signo reintegracionista, exercendo a sua influência e magistério, na sombra, mas sem ninguém discutir o seu liderato. Pudemos assim conhecer daquela a um homem excepcional, muito superior  á miserenta e mediocre fauna literária que tanto abonda no país, entregados ante o poder e o dinheiro.

Porém, este homem do que falo, foi ignorado durante trinta anos e as suas ideias combatidas ou silenciadas, sumindo aos seus seguidores no ostracismo e despreço. Se bem houvo também muitas homenagens, artigos, jornadas e congressos na sua honra e memória por parte dos seus afins, ou dos concelhos de Ferrol e Santiago.  

Alguns malintencionados ou envejosos tenhen divulgado o ruxe-ruxe de que Carvalho chocheou de velho e que por vingança de não ser presidente da RAG ou não conseguir sacar adiante a sua normativa ortográfica do 82, inventou o reintegracionismo, seguido  por um cento de fanáticos que o reverenciavam como a um santão indu. Realmente essa gente tinha outros projectos máis espanholizadores para Galiza, e nem leram bem a Carvalho Calero, nem conhecem as suas obras,-entre elas a sua importante Tese doutoral-,  nem compreenderam nunca que entre os seus correligionários lingüísticos estavam quiça milhares dos melhores intelectuais e escritores do páis, aos que lhes foi impedido publicar em prensa e editoras. O achegamento ao português ja vinha desde os tempos de Pondal, de Nós, de Guerra da Cal,  e foi claramente proposto nas Directrices no 79 por Martinho Montero Santalha, entre outros, por Agal e pola AGLP. A sua biblioteca pessoal está depositada no Parlamento de Galiza, para consulta investigadora. 

Alem disso, as mais destacadas autoridades universitárias de Europa, Portugal e Brasil também afirmam que galego e português são variedades da mesma lingua e tanta gente não poderia equivocar-se, nem ser conduzidos ao abismo como ratos por um visionário que toca a frauta em Hamelim. A história acabará dando a razão a Carvalho Calero.

 Teremos que confessar a dia de hoje que efectivamente tivemos um grande afecto a  D. Ricardo, certa debilidade em aceitar tudo o que dele vinha,-mesmo romances tão excelentes como Scorpio-, respeitando sem discutir a sua autoridade bem merecida.

 Sempre estava disposto a opinar sobre uma questão posta, a fazer uma leitura crítica dos nossos textos, prologar-nos um livro, comentar um artigo, e mesmo colaborar ele mesmo com envío de artigos para revistas escolares ou participar generossamente nas nossas aulas de Bacharelato, em congressos, jornadas, palestras nos Institutos, ou deixar-se fotografar e entrevistar, plenamente consciente de que se achegava o fim da sua viagem e havia que deixar prova documental de que passara por aqui e deixara escola. A verdade é que o utilizamos como grande ajuda para melhor defender a causa, quiça excessivamente dado a súa idade. Mas ele gostava disso e jamais disse que não.

E assim foi até que morreu o 25 de Março de 1990 na sua amada Compostela da Universidade. Sentimos uma profunda tristeza e grande vergonha de ser galegos nessa hora, de pertencer a uma Terra e uma casta de homes que não honra aos seus mortos máis ilustres como se deve. Houvo silencio administrativo das autoridades por resposta.

Apesar disso, lembro com saudade o seu multitudinário enterro em Santiago, especialmente quando ao seu passo um aplauso unánime resoou nas escadeiras de pedra da igreja de S. Francisco, palmas que ouvia por primeira vez em um funeral, reservadas só para aqueles que as mereceram com a sua vida e obra. Quando depositaram o ataúde no nicho do cemitério de Boisaca, nas gorjas dos últimos trescentos amigos que o acompanharam na  última viagem, começou o canto coral do hino nacional completo de Pondal, iniciado com a inconfundível e polémica voz do deputado Beiras. Foi uma despedida emocionante e inesquecível, dedicada a alguém a quem admirávamos e aínda hoje, trinta anos depois, lembramos com respeito e carinho, relendo máis uma vez a sua obra e repensando as suas ideias, totalmente vigentes hoje e próximas a ejecutar-se. 

Nom houvo uma bandeira azul e branca sobre o seu cadaleito, mas com certeça, bem o sabemos,  D. Ricardo a levava dobrada no peto da casaca, como sempre fizeram os melhores filhos galeguistas que honran esta pátria nossa.