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domingo. 26.03.2023
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De como recuperar livros que desapareceram

Um bom amante de livros não os esquece tão facilmente. Aqueles que perdi, pensava eu definitivamente, aparecem gloriosos

DEVO DIZER-VOS que se trata de uma história verdadeira que aconteceu comigo e se terá passado certamente convosco. As pessoas que hoje vão nos cinquenta anos, sessenta e outros enta sabem que perderam livros que ao longo do tempo constituíram a sua biblioteca quando tinham quinze, dezasseis anos e mais uns dos que vieram logo a seguir. Penso que a década em que tivemos vinte anos talvez seja mesmo a que desenha a nossa personalidade estampada nos livros e que se reflete até hoje, com algumas variantes, bem-entendido. Entretanto, as bibliotecas pessoais foram alargando-se, engordando, vítimas do sabor do tempo e da moda. E os poetas que nos abandonaram vendendo-se ao status quo? E os nossos autores preferidos que, entretanto, se renderam aos prémios literários? Quantos destes livros foram deitados ao lixo e substituídos por outros mais modernos. Agora vejam: para além da contínua substituição dos livros, dos empréstimos a alguns a quem perdemos o rasto, houve também mudanças de casas e livros perdidos, inundações, divórcios, separações litigiosas ou compreensivas, embora não tanto que impedisse o excônjuge de dizer "Estes são meus!" e as bibliotecas continuaram a transformarem-se. Ora, um bom amante de livros não os esquece tão facilmente. Aqueles que perdi, pensava eu definitivamente, aparecem gloriosos, agora, nos alfarrabistas. Já passaram 40 e muitos anos e torna-se lógico que numa visita a um alfarrabista se encontram os livros da nossa juventude. Agora vem a história: há uns anos vendi parte da minha biblioteca para conseguir dinheiro para uma viagem a grande parte da Europa numa autocaravana. Devo dizer que escondido comerciante alguns de que não podia sequer pensar em separar-me. Mas a grande parte da poesia, do romance, dos livros de História, de Filosofia, Sociologia, Antropologia, de catálogos de arte, foram-se. O arrependimento veio logo a seguir, de alguns livros que deixei ir: Alguns do editor Vítor Silva Tavares, um de António Maria Lisboa, de Cesariny, de Nuno Júdice, de Mircea Eliade ou de Edgar Morin. Muitos. O que me acontece agora é reencontrar-me com eles nas lojas de livros antigos. Tenho recuperado muitos a preços proibitivos. Do que mais senti a falta, aquele que me fez chorar copiosamente a alma foi a minha venda criminosa de um livro do poeta surrealista Cesariny. Eram os Textos de afirmação e combate do Movimento Surrealista Mundial, uma resenha luminosa da poesia surrealista que se fez pelo mundo todo. Mas há uma semana, readquiri-o numa Feira do Livro. O preço era exorbitante: 175 euros, quando, com 22 anos, me custou uns 200 escudos que correspondem hoje a 1 euro. E assim tenho-me afastado paulatinamente das livrarias dos grandes espaços e enfio-me em alfarrabistas procurando o meu passado nos livros que possuí. Cada vez que reponho um livro na minha estante, sinto-me mais velho, mas incomparavelmente mais feliz. E mais falido, também. Mereço-o.

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